quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Picharam o vazio da Bienal

Em o8 de dezembro de 2007, escrevi aqui a crônica “A bienal do vazio”. O apelido pegou. Os curadores iam deixar todo um andar vazio exibindo a crise das bienais e da arte, hoje. No entanto, na noite da inauguração, no domingo passado, cerca de 40 pichadores invadiram o prédio do Ibirapuera, em São Paulo, e sujaram paredes, tentando se apoderar do “vazio”. Houve arruaça, prisões, e o que era notícia cultural virou escândalo policial.
Há duas maneiras de tratar esse assunto. A primeira é superficial: ser contra, ser a favor, ser contra e a favor. Essa seria apenas uma reação emocional. Legítima. Deve-se tentar outro nível de interpretação, que se insere num quadro mais amplo e tem antecedentes que devem ser examinados. Aspirina tira dor, mas não resolve o enfarto. A arte contemporânea está enfartada por excesso de gorduras. Há uma bolha de ar nas artérias da arte provocando embolia. Vejamos alguns equívocos e paradoxos de vários lados.
1 – Os curadores: Estes pensaram equivocadamente que, deixando um andar vazio, estariam metaforizando, superando tanto a crise do conceito de bienal quanto as aporias da “arte contemporânea”. Engano. Estavam se autoincriminando, jogando o sujo sob o tapete, ficaram a meio caminho, sem audácia para uma guinada radical, que só pode ser dada por alguém de fora do sistema. Esses curadores são o sistema.A não-arte, a quase-arte, a anti-arte da Bienal é (autoritariamente) a arte oficial do nosso tempo, à ideologia dominante, é o que Howard Becker chama de “arte institucionalista”. De certo modo, os pichadores têm razão, o andar vazio é uma falsa solução e uma provocação. O vazio que deve ser preenchido e esclarecido está na cabeça dos curadores. Esse vazio tem de ser refeito e ocupado por novas idéias.
2 – Os pichadores: Esses estão atrasados mais de 100 anos. Isso tudo já foi feito no futurismo e no dadaísmo, movimentos que tiveram alguma virtude, mas cometeram um erro básico: confundiram qualquer “ato” ou “ação” com arte. Se o futurismo era expressamente fascista, o dadaísmo era um fascismo às avessas, às vezes engraçado, mas irremissivelmente niilista, infantil e caótico. Há que ter coragem e instrumentos teóricos para rever isso. É preciso sair do século 20, sem voltar ao 19. As frases dos jovens pichadores não resistem a qualquer análise. São espasmos de adrenalina grafitados, descargas verbais e hormonais com conteúdo estético discutível.
Há muitos estudos que esclarecem esses mal-entendidos. Até eu lancei, semana passada o livro O enigma vazio, impasse da arte e da crítica. Só no final do livro Le triple jeu de l ‘art contemporain, Nathalie Heinich, a melhor socióloga da arte após Bourdieu, fornece 10 páginas de bibliografia sobre certos equívocos da arte contemporânea. Mas, uma das fontes mais seguras são os estudos de double bird feitos por Gregory Bateson. A partir das obras desse antropólogo e cientista, entende-se o aspecto esquizofrênico de nossa cultura: ela dá ordens contraditórias às pessoas, fazendo com que elas enlouqueçam. Uma dessas ordens, no espaço da arte é “transgrida”. O transgressor (obedientemente) transgride, logo, deixa de ser transgressor. Mas a ordem continua e o transgressor vai enlouquecendo até descobrir que caiu num círculo vicioso. Cuidado com a astúcia do sistema, pois o modo mais eficaz de enlouquecer o “transgressor” é aceitar sua “transgressão”, oficializando-a.
No caso da Bienal, o paradoxo foi maior. Os curadores que são os “transgressores” oficiais, apoderaram-se da transgressão e disseram para os pichadores: “Minhas transgressão é melhor que a sua”. Ora, isso é um insulto, um convite aos pichadores para reagirem. Os estudiosos de double bird (enlace duplo), demonstram que a esquizofrenia nem sempre tem causas biológicas, mas vem de frases, conceitos, práticas ideológicas contraditórias. Analisar essas contradições (não evidentes) na linguagem do sistema ou do indivíduo é começar a esclarecer os mal-entendidos. Por isso, uma análise do discurso da arte de nosso tempo é imprescindível. Trabalhai, lingüistas, trabalhai!.
Repito: o vazio lá no segundo andar do Ibirapuera é um equívoco, o vazio está na cabeça de certas pessoas. É um vazio de conceitos.

Affonso Romano de Sant´Anna
Caderno Cultura, pg 8
Jornal Estado de Minas, domingo
2 de novembro de 2008.

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