quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Picharam a Bienal e daí?...


Ao ler o texto “Picharam o vazio da Bienal”de Affonso Romano de Sant´Anna, dou-me ao direito de trazer minhas reflexões para o contexto abordado pelo autor: “...na noite da inauguração, no domingo passado, cerca de 40 pichadores invadiram o prédio do Ibirapuera, em São Paulo, e sujaram paredes, tentando se apoderar do “vazio”. Houve arruaça, prisões, e o que era notícia cultural virou escândalo policial.”
Ao citar as formas de tratar o tema, nomeia como superficial a escolha de alguém ser a favor ou contra e ainda coloca como sendo “uma reação emocional e legítima.” Pois bem, trata-se de reconhecer a todos o direito de opinião, mas vale lembrar que a Bienal recebe todo o tipo de público e cada um deles com condições de aprofundar mais ou menos tais questões, e não somos nós teóricos, críticos e ou práticos da Arte que vamos lhes conceder esta legitimidade. A legitimidade esta no fato do apreciador sentir-se tocado ou não. E aqui, coloco-me como alguém que não viu, mas que se sente tocada pela idéia da presença do vazio... Talvez, seja difícil de acreditar, mas mesmo sendo artista plástica não tenho um quadro que seja pendurado ou escorado nas paredes de minha casa... Porque a mim o vazio é estimulante os excessos produzidos pela sociedade me incomodam.
A meu ver as questões que envolvem “o vazio” são muito relativas, pois qualquer vestígio de presença já se constitui no “não vazio”, no ocupado, no preenchido... Não importando aqui a forma ou a linguagem em questão... se houver música já não há mais vazio, se houver luminosidade há presença de luz, sombra e cor... A que se pensar, qual é o nosso conceito de vazio e associarmos a isto, uma pergunta: - Será que é possível encontrarmos o vazio na contemporaneidade? Em uma sociedade na quais as pessoas insistem nas mais diversas formas de presença na física, na espiritual, na virtual... onde cada um tenta aumentar a dimensão e a permanência de seus vestígios, deixando rastros por toda parte? Vejo o vazio proposto pela curadoria sob este olhar muito particular, um olhar que permite que cada visitante da mostra, ouse com sua presença a provocar o “preenchimento” e porque não até deixar um gesto, um traço, um ruído... uma pergunta, uma resposta, um estranhamento.
Penso que os pichadores sim, foram emocionais e apropriaram-se apressadamente de um espaço que deveria ser degustado com parcimônia, podendo servir a todos como reflexão. Mas não, como sempre fizeram questão de impor a sua presença porque vivem e alimentam-se disto que inclusive é um ato de vandalismo e considerado crime. Não estou defendendo o ato, mas me preocupo quando vem alguém com teorias tentando categorizar as pessoas com afirma o autor: “As frases dos jovens pichadores não resistem a qualquer análise. São espasmos de adrenalina grafitados, descargas verbais e hormonais com conteúdo estético discutível.” Talvez fosse mais interessante se nos perguntássemos quem são estes jovens? Quem estava no comando deste sistema? A quem interessava política, social e culturalmente este gesto? Quem pagou pela ação? Quais foram às cabeças que atentas aos desafios da curadoria propuseram este ato emergencial? Aí sim, talvez encontrássemos respostas, aí sim neste contexto conseguiríamos fazer uma análise da mensagem deixada por eles. Talvez, olhando estas pessoas de bem perto, pudéssemos entender, esta descarga descabida de adrenalina e até encontrássemos um conteúdo estético discutível e conseguíssemos discuti-lo. Agora, enquanto ficarmos encastelados olhando de longe, nos apropriando de saberes teóricos, nos aprofundando nos conceitos da critica da Arte ficaremos assim procurando achar os culpados. Enquanto, que a Arte Contemporânea está ai jogando na nossa cara, que não existe mais o certo e o errado, e que as verdades absolutas podem e devem ser revistas... E isto vale para todos. Mas, se formos atentos podemos perceber sim, que existem pessoas que se ajustam mais ou menos a um sistema e suas necessidades e isto em todos os espaços sociais. E aqui cabe lembrar daquelas pessoas que se enclausuram no meio acadêmico, olhando o outro sempre pelo viés de alguma teoria construída por outrem.


Marilia Schmitt Fernandes – Canoas – RS
Arte/educadora e artista plástica


Picharam o vazio da Bienal

Em o8 de dezembro de 2007, escrevi aqui a crônica “A bienal do vazio”. O apelido pegou. Os curadores iam deixar todo um andar vazio exibindo a crise das bienais e da arte, hoje. No entanto, na noite da inauguração, no domingo passado, cerca de 40 pichadores invadiram o prédio do Ibirapuera, em São Paulo, e sujaram paredes, tentando se apoderar do “vazio”. Houve arruaça, prisões, e o que era notícia cultural virou escândalo policial.
Há duas maneiras de tratar esse assunto. A primeira é superficial: ser contra, ser a favor, ser contra e a favor. Essa seria apenas uma reação emocional. Legítima. Deve-se tentar outro nível de interpretação, que se insere num quadro mais amplo e tem antecedentes que devem ser examinados. Aspirina tira dor, mas não resolve o enfarto. A arte contemporânea está enfartada por excesso de gorduras. Há uma bolha de ar nas artérias da arte provocando embolia. Vejamos alguns equívocos e paradoxos de vários lados.
1 – Os curadores: Estes pensaram equivocadamente que, deixando um andar vazio, estariam metaforizando, superando tanto a crise do conceito de bienal quanto as aporias da “arte contemporânea”. Engano. Estavam se autoincriminando, jogando o sujo sob o tapete, ficaram a meio caminho, sem audácia para uma guinada radical, que só pode ser dada por alguém de fora do sistema. Esses curadores são o sistema.A não-arte, a quase-arte, a anti-arte da Bienal é (autoritariamente) a arte oficial do nosso tempo, à ideologia dominante, é o que Howard Becker chama de “arte institucionalista”. De certo modo, os pichadores têm razão, o andar vazio é uma falsa solução e uma provocação. O vazio que deve ser preenchido e esclarecido está na cabeça dos curadores. Esse vazio tem de ser refeito e ocupado por novas idéias.
2 – Os pichadores: Esses estão atrasados mais de 100 anos. Isso tudo já foi feito no futurismo e no dadaísmo, movimentos que tiveram alguma virtude, mas cometeram um erro básico: confundiram qualquer “ato” ou “ação” com arte. Se o futurismo era expressamente fascista, o dadaísmo era um fascismo às avessas, às vezes engraçado, mas irremissivelmente niilista, infantil e caótico. Há que ter coragem e instrumentos teóricos para rever isso. É preciso sair do século 20, sem voltar ao 19. As frases dos jovens pichadores não resistem a qualquer análise. São espasmos de adrenalina grafitados, descargas verbais e hormonais com conteúdo estético discutível.
Há muitos estudos que esclarecem esses mal-entendidos. Até eu lancei, semana passada o livro O enigma vazio, impasse da arte e da crítica. Só no final do livro Le triple jeu de l ‘art contemporain, Nathalie Heinich, a melhor socióloga da arte após Bourdieu, fornece 10 páginas de bibliografia sobre certos equívocos da arte contemporânea. Mas, uma das fontes mais seguras são os estudos de double bird feitos por Gregory Bateson. A partir das obras desse antropólogo e cientista, entende-se o aspecto esquizofrênico de nossa cultura: ela dá ordens contraditórias às pessoas, fazendo com que elas enlouqueçam. Uma dessas ordens, no espaço da arte é “transgrida”. O transgressor (obedientemente) transgride, logo, deixa de ser transgressor. Mas a ordem continua e o transgressor vai enlouquecendo até descobrir que caiu num círculo vicioso. Cuidado com a astúcia do sistema, pois o modo mais eficaz de enlouquecer o “transgressor” é aceitar sua “transgressão”, oficializando-a.
No caso da Bienal, o paradoxo foi maior. Os curadores que são os “transgressores” oficiais, apoderaram-se da transgressão e disseram para os pichadores: “Minhas transgressão é melhor que a sua”. Ora, isso é um insulto, um convite aos pichadores para reagirem. Os estudiosos de double bird (enlace duplo), demonstram que a esquizofrenia nem sempre tem causas biológicas, mas vem de frases, conceitos, práticas ideológicas contraditórias. Analisar essas contradições (não evidentes) na linguagem do sistema ou do indivíduo é começar a esclarecer os mal-entendidos. Por isso, uma análise do discurso da arte de nosso tempo é imprescindível. Trabalhai, lingüistas, trabalhai!.
Repito: o vazio lá no segundo andar do Ibirapuera é um equívoco, o vazio está na cabeça de certas pessoas. É um vazio de conceitos.

Affonso Romano de Sant´Anna
Caderno Cultura, pg 8
Jornal Estado de Minas, domingo
2 de novembro de 2008.